As sequelas espirituais deste período de
repressão e humilhação são subestimados ,
Durante muitos anos de
trabalho em grupos mediúnicos nos deparamos, muitas vezes, com espíritos que em
sua última encarnação foram negros escravos no Brasil. São, em quase sua
totalidade, grupos relativamente grandes, unidos por experiências de extremo sofrimento
moral e físico.
Como de praxe nesses
casos, algozes e vítimas permanecem aprisionados na atmosfera psíquica de suas
vivências, recapitulando-as incessantemente. Ao dialogarmos com esses irmãos,
em meio ao ódio e ao desespero encontramos também uma imensa prostração das
forças morais, uma tristeza profunda nascida da desesperança. Essas
experiências nos fizeram perceber quão subestimada é a herança espiritual da
escravidão no Brasil.
Uma rápida incursão na
literatura um pouco mais especializada e para além dos livros escolares já nos
dá uma noção das proporções do problema. Na literatura espírita, “Brasil,
coração do mundo, pátria do Evangelho”, também permite entrever a gravidade
dessa questão.
É desnecessário nos
alongarmos sobre a posição da Doutrina Espírita quanto ao tema da escravidão,
mas apenas como exemplo, vejamos a questão 831 de “O Livro dos Espíritos”:
Pergunta: A desigualdade
natural das aptidões não coloca certas raças humanas sob a dependência das
raças mais inteligentes?
Resposta: Sim, mas para
que estas as elevem, não para embrutecê-las ainda mais pela escravização.
Durante longo tempo, os homens consideram certas raças humanas como animais de
trabalho, munidos de braços e mãos, e se julgaram com o direito de vender os
dessas raças como bestas de carga. Consideram-se de sangue mais puro os que
assim procedem. Insensatos! Nada vêem senão a matéria. Mais ou menos puro não é
o sangue, porém o Espírito. (361-803)
Porém, é oportuno lembrar
que o nascente movimento espírita brasileiro, através de suas instituições e
representantes ilustres tais como Adolfo Bezerra de Menezes e Francisco Leite
de Bittencourt Sampaio, contribuiu para o movimento abolicionista. Por exemplo,
A. B. de Menezes, em se referindo à escravidão, pergunta:
“Pode haver paz e
felicidade para as famílias enquanto guardarem elas em seu seio essa cratera
ardente que lhes requeima sempre a flor da inocência e da virtude de seus
filhos?”
Ou ainda, no
“Reformador”:
“Substituir o regime da
liberdade, dom divino, pelo da escravidão, abuso da força sobre a fraqueza,
menos não é do que contrariar o código de leis absolutas; a nós compete pôr,
fielmente, em execução este código” (Reformador, 01 de janeiro de 1887).
Mas, se nós espíritas
contribuímos para a extinção da escravidão no plano encarnado, temos
contribuído igualmente para a devida cura de suas sequelas espirituais? Nossas
reuniões mediúnicas tem acolhido fraternalmente esse particular grupo de
Espíritos? Temos coração e entendimento abertos às suas histórias de vida?
Receio que, via de regra, o preconceito e a desconfiança ainda permeiem o
atendimento a esses irmãos. Neste aspecto, como em muitos outros, ainda não nos
portamos a altura da doutrina que ora professamos, permitindo que a
discriminação que ainda grassa na sociedade contamine a seara espírita.
Refletindo sobre as causas
dessas dificuldades penso que ao menos uma delas seja o receio, consciente ou
não, de sermos confundidos com adeptos das religiões e cultos de origem
africana. Como sabemos, é grande ainda a confusão na sociedade em geral a esse
respeito. Ora, tal receio não deveria ser maior que o de sermos rotulados de
católicos ou protestantes, mas, no entanto, creio que os Espíritos de padres e pastores
desencarnados não sejam objeto de semelhantes prevenções quando comparecem à
maioria das tarefas mediúnicas. Ironicamente, essa relutância – ou até mesmo
omissão dos espíritas – pode, perfeitamente, ter contribuído para o surgimento
da Umbanda, em cujas genuínas lides esses irmãos encontram guarida.
Particularmente neste
momento de transição espiritual urge estarmos atentos a todo o bem que possamos
realizar. E os espíritas têm muito a contribuir para a quitação dessa dívida
moral coletiva, que onera tão pesadamente a psicosfera do Brasil.
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