"Ninguém disciplina
ninguém. Ninguém se disciplina sozinho. Os homens se disciplinam em comunhão
mediados pela realidade" (Paulo Freire)
Disciplina é uma palavra
de larga aplicação no livro da vida. Podemos considerá-la uma virtude pessoal e
intransferível, que ornamenta nosso espírito quando vem por aquisição, mas que
pode às vezes violentá-lo, quando dele se acerca por imposição. A disciplina
pode ser boa ou má, dependendo da situação daquele que a impõe e daquele que
deve submeter-se.
Quando Gandhi rebelou-se
contra a política inglesa e estabeleceu a revolução pacifica da não-violência,
foi taxado de indisciplinado pelos ingleses. Mas, para consigo e seu povo,
exigiu uma disciplina férrea de não agressão a seus opositores, nem mesmo pelo
pensamento. Galileu, o sábio italiano, foi indisciplinado segundo as normas da
igreja, mas fiel e disciplinado para com a ciência, a quem serviu e defendeu
com todo ânimo. Einstein era "desligado" em certas aulas porque os
assuntos ministrados eram desestimulantes para o seu raciocínio avançado. A
chamada noite de São Bartolomeu, na qual Catarina de Médicis mandou apunhalar
os protestantes franceses, foi um ato cometido em nome da disciplina religiosa.
O que estamos querendo dizer é que disciplina tem direção e sentido, os quais
devem ser coerentes na aplicação e justos na causa.
Quem
se aproveita do autoritarismo para travestir-se de disciplinador, criando
normas despóticas e arbitrárias, é apenas prepotente, servo da arrogância e
escravo da tirania. A disciplina é firme e dócil, enérgica e suave para quem a
compreende. Não é sinônimo de castigo, mas de ordem e respeito aos objetivos
propostos como meta por quem lhe adotou a companhia. Não tendo um fim em si
mesma, essa responsável educadora deve ajustar-se às necessidades atuais de
cada indivíduo, evoluindo com ele, trabalhando-lhe o Espírito no paradigma da
justiça. Vencidas as dificuldades e necessidades que a disciplina enfrentou, a
fiel educadora poderá mudar a sua atuação, pois sendo feita para o
homem, deverá acompanhá-lo em
suas carências e em seu crescimento.
Para alguns principiantes
nas hostes da disciplina ela poderá parecer, uma acompanhante rigorosa, que
tolhe iniciativas, castra desejos, dá ordens. Na verdade, se a disciplina não
faz o papel de buril, lixa, tesoura ou algo que modele, desbastando contornos
indesejáveis e arestas desnecessárias, ela falha em sua aplicação fundamental,
pois não fará brilhar no Espírito a beleza encoberta pela capa da indiferença
às leis divinas. Falo aqui da disciplina religiosa, aquela que induz o
indivíduo à auto regulação, amoldando-se aos objetivos à serem colimados como
meta de sua fé.
Quando se resolve ser umbandista, tem-se invariavelmente um
encontro marcado com a disciplina. Mesmo que não seja o "vigiai e
orai", estágio disciplinar mais avançado, o principiante umbandista deverá
sair da rotina do comodismo, para a conscientização de suas necessidades
evolutivas. Aos poucos ele vai descobrindo que no Templo umbandista os minutos
revestem-se de maior significação, aproveitados no trabalho, no estudo
doutrinário, no esclarecimento dos problemas existenciais, no fortalecimento da
amizade, na gentileza ou nos afagos da caridade. Ali, o anedotário vulgar, o
falatório impiedoso, a critica maldosa não prevalecem, pois não encontram
receptividade para expandir-se. A dor alheia é sempre motivo de busca aos
antídotos contra os venenos que a causaram, e a desgraça é sinal verde para a
passagem da fraternidade restauradora.
A disciplina é moradora, e
não visitante dos Templos Umbandista, pois aquele que a despede manda
igualmente embora as rédeas da instituição. Disciplina e caridade formam o
dueto maior de um templo, atuando conjuntamente sob a orientação do bom senso.
A disciplina, nesse contexto, não deve ser tão rígida que atropele a caridade,
e esta deve ser suficientemente racional para não descaracterizar a disciplina.
A
disciplina é uma virtude divina, usada em todo o universo em seus aspectos macro
e micro. Desde as galáxias aos nossos órgãos vitais, passando pela queda das
flores e o pequenino átomo, esta virtude impõe suas diretrizes para que a
harmonia não sofra defasagens. O fugitivo da disciplina vai de encontro a
própria natureza quando, transportando-a dentro de si, em sua configuração
anatômico-fisiológica, dela procura ausentar-se em processo de fuga infantil e
sem saída. Sob esse prisma o indisciplinado é um fora da lei, que precisa
ajustar-se ao roteiro benéfico para ele criado, visando proporcionar-lhe os
benefícios da paz, fruto imediato do dever cumprido.
Nenhum Espírito há que
tenha ingressado em um mundo superior sendo indiferente à disciplina. Ninguém
há que ame a si e despreze a disciplina. Ninguém que busque a Deus pelos caminhos
da indisciplina. A disciplina é companheira assídua da afetividade. Por esse
motivo, qualquer pessoa que tente impor disciplina através de gritos e ameaças (cumpridas ou não) revela
desconhecimento do tema. Neste
caso, as palavras tentam obter a obediência ou mesmo a colaboração, mas na
maioria das vezes obtêm apenas representações. Enquanto presente, a revolta
muda usa a máscara da obediência e da participação, mas ao afastar-se o ditador
prevalece o clima de desagrado e rebeldia. O pseudo-disciplinador pode até
dizer: aqui eu mando e sou obedecido. Mas deveria complementar: e sou odiado. A
atitude de firmeza e serenidade, a força vigorosa da delicadeza é que levam a
uma disciplina por aquisição. Ao iniciar a colaboração no processo disciplinar,
o indivíduo, de livre vontade, assume o engajamento nas mudanças, despertando o
espírito para as reformas interiores que se refletem nos comportamentos
exteriores.
Em algumas pessoas, a
parte afetiva encontra-se soterrada sob camadas de mágoas, tristezas, ressentimentos,
medo, frustração, raiva... Cabe ao disciplinador retirar o entulho depressivo
ou rebeldia, para atingir o núcleo da afetividade que existe em todas as
pessoas. Não é assim na desobsessão? O obsessor, rebelde a princípio, não vai
perdendo as sucessivas camadas de sentimentos inferiores, demonstrando por fim
o desejo de renovação, mola propulsora do seu refazimento?
O homem religioso sente
necessidade de disciplinar seu Espírito dentro do "espírito" da
verdade. A religião em si, de origem divina, mas administrada por humanos que
introduzem nela seu personalismo, apresenta-se em muitas ocasiões carregada de
vícios, incentivando a fé irracional ou morta, garroteando a autocrítica de
seus seguidores. Muitas ainda em fase de seita salvacionista, pretendendo a
posse exclusiva da verdade, apresentando-se como via única de salvação. Assim
procedendo, amesquinha a ideia da dimensão de Deus, que é mostrado sob ótica
estrábica, como o velho e ciumento Deus do Antigo Testamento, que distribuía
privilégios indiscriminadamente. Agem como se Deus, o Senhor da Vida, pudesse
colocar em mãos torpes a sua verdade universal e atemporal, luz demais para
pobres lamparinas. Mas, muito antes de Moisés, a verdade do budismo já
maravilhava o mundo com a sua simplicidade e beleza, antecipando a mensagem
luminosa de Jesus. Não é sem razão que a Umbanda, o Espiritismo e o Budismo
sejam as religiões que mais crescem no Brasil. Religiões que primam pela
disciplina espiritual, levando à meditação libertadora, priorizando as virtudes
espirituais, sem o obsessivo desejo de posse, sem a cobiça aos bens materiais.
Quando Jesus mencionou a
"porta estreita", o "negar a si mesmo", o "tomar a sua
cruz", estava falando de quê? Não seria de renúncia, uma das velhas
companheiras da disciplina? Para entrar pela porta estreita é necessário
rigorosa dieta espiritual, forçando a obesidade inútil das nossas imperfeições
a diluir-se pela ginástica do amor. E para isso o cardápio não traz como prato
principal a disciplina? Para tomar a cruz aos ombros é urgente negar a si
mesmo, reafirmando não o eu mundano, mas o eu divino, essência final da
evolução.
A disciplina é a madeira
mágica da cruz. Quem a ela se submete de bom grado, a tem com ares maneirosos,
e quem contra ela se rebela, a encontra com apêndices onerosos. Lembramos aqui
que carregar a cruz é uma atitude difícil para a grande maioria de
inconformados do mundo, que não entendem por que sofrem, nem para que sofrem,
alienados pelos ensinamentos de suas religiões dogmáticas. O homem que auxiliou
Jesus a carregar a mais bela cruz do planeta o fez por imposição irrecusável,
como constrangidos são milhões de criaturas, para cumprirem suas obrigações
cotidianas.
No Templo Umbandista, o
bom senso não pode ser exceção. A ausência dele é regra que não se aplica aos
que querem servir ao bem. O cidadão comum come, bebe, trabalha, deita e
procria. Do umbandista exige-se algo mais, que o retire da extensa lista dos
acomodados: a disciplina. E ela se afirma no esforço de renovação, que deve ser
feito a cada dia. É esse esforço que nos pacifica e rejuvenesce. Perseguindo
incessantemente a velha aspiração de paz e justiça, de fraternidade, de amor ao
próximo e a si mesmo - essência da pedagogia cristã - o umbandista está
perseguindo o ideal da doutrina, o saudável ideal que lhe mantém o entusiasmo,
mesmo ali, onde os outros fraquejam e capitulam.
Disciplinemos nossas
emoções para que elas não nos disciplinem. Lembremo-nos de que, para o cavalo a
disciplina pode ser as rédeas, mas para o Espírito imortal ela tem que ser o
amor e o conhecimento em toda a sua imensa gama de atuações.
E não esqueçamos nunca: o advérbio de negação
também consta da gramática do amor, no extenso capítulo da disciplina.
aela apostila coletânea