terça-feira, 17 de julho de 2018

CALUNGA GRANDE








O termo "calunga" é de origem bantu e tradicionalmente faz referência à morada dos mortos, ou mais comumente, ao cemitério.  Assim, sempre que nos referimos à calunga, estamos nos referindo ao campo santo, o cemitério, o local os despojos carnais são depositados.  No entanto, essa palavra assumiu uma outra dimensão.

Ao serem capturados (ou ao ver seus irmãos sendo feitos cativos) e colocados em navios negreiros, os africanos passaram a ver o mar como um grande cemitério, já que a viagem rumo à escravidão representava uma espécie de morte em vida.  Era como se o mar levasse embora tudo que lhes era precioso: os costumes, a crença, a dignidade, o convívio com os entes queridos e, principalmente, a liberdade.  Dessa forma, o mar passou a ser encarado como uma grande calunga, ou seja, como um grande cemitério.

Assim surgem dois novos verbetes no vocabulário do negro – e que viriam integrar o dialeto das religiões com matiz africana: a calunga grande (o mar) e a calunga pequena (o cemitério propriamente dito).

Há um aparente paradoxo na utilização desse termo para se referir ao mar, afinal não é ele um dos reinos dos orixás?  Não seria o mar a origem da vida?  Então como relacioná-lo à morte?

Não esqueçamos que a morte (iku em yorubá) não representa o fim, e sim uma transformação.  Não esqueçamos também que Omolu, o orixá da cura, mas também da morte (no sentido de transformação, não de fim), e Iemanjá, a rainha do mar, o princípio e a origem da vida, da maternidade, da concepção.

O que parece ser um paradoxo é, na verdade, a explicação para essa questão.  Ao mesmo tempo em que o mar representava a morte aos cativos, representava também um renascimento no Brasil.  Não que esse renascimento fosse algo agradável, longe de defender a escravidão, mas era um renascimento no sentido de levar a sua cultura, as suas crenças, os seus orixás a terras tão distantes.  Era como se a o pai Omolu determinasse o fim em terras africanas e Iemanjá um recomeço em novas terras, permitindo assim que os povos americanos tivessem a oportunidade de conhecer as divindades pelo ponto de vista africano, e não do europeu, tradicionalmente cristão/católico.  Concluímos que aqueles negros cativos, bravos heróis, deram a sua liberdade e a sua vida para nos agraciar com a crença e o conhecimento sobre os divinos orixás, inkisses e voduns.  Graças a eles e à sua heroica resistência hoje temos a oportunidade de cultuar essas entidades, sem a viseira das religiões tradicionais da Europa.

Assim sendo, o mar, chamado de calunga grande, que representou em tempos idos um gigantesco cemitério, é para nós um reino sagrado, que nos trouxe essa oportunidade.  A quem cultua as divindades do panteão africano não basta reverenciar seus reinos sagrados, é preciso conhecer os seus fundamentos e história.    Ao colocar os pés na água do mar, não esqueça de saudar os divinos orixás, a vida e aos nossos ancestrais cativos, a quem devemos tanto.



Texto de: Douglas Fersan

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