quinta-feira, 29 de maio de 2014

DISCIPLINA NA UMBANDA





"Ninguém disciplina ninguém. Ninguém se disciplina sozinho. Os homens se disciplinam em comunhão mediados pela realidade" (Paulo Freire)


Disciplina é uma palavra de larga aplicação no livro da vida. Podemos considerá-la uma virtude pessoal e intransferível, que ornamenta nosso espírito quando vem por aquisição, mas que pode às vezes violentá-lo, quando dele se acerca por imposição. A disciplina pode ser boa ou má, dependendo da situação daquele que a impõe e daquele que deve submeter-se.

Quando Gandhi rebelou-se contra a política inglesa e estabeleceu a revolução pacifica da não-violência, foi taxado de indisciplinado pelos ingleses. Mas, para consigo e seu povo, exigiu uma disciplina férrea de não agressão a seus opositores, nem mesmo pelo pensamento. Galileu, o sábio italiano, foi indisciplinado segundo as normas da igreja, mas fiel e disciplinado para com a ciência, a quem serviu e defendeu com todo ânimo. Einstein era "desligado" em certas aulas porque os assuntos ministrados eram desestimulantes para o seu raciocínio avançado. A chamada noite de São Bartolomeu, na qual Catarina de Médicis mandou apunhalar os protestantes franceses, foi um ato cometido em nome da disciplina religiosa. O que estamos querendo dizer é que disciplina tem direção e sentido, os quais devem ser coerentes na aplicação e justos na causa.

Quem se aproveita do autoritarismo para travestir-se de disciplinador, criando normas despóticas e arbitrárias, é apenas prepotente, servo da arrogância e escravo da tirania. A disciplina é firme e dócil, enérgica e suave para quem a compreende. Não é sinônimo de castigo, mas de ordem e respeito aos objetivos propostos como meta por quem lhe adotou a companhia. Não tendo um fim em si mesma, essa responsável educadora deve ajustar-se às necessidades atuais de cada indivíduo, evoluindo com ele, trabalhando-lhe o Espírito no paradigma da justiça. Vencidas as dificuldades e necessidades que a disciplina enfrentou, a fiel educadora poderá mudar a sua atuação, pois sendo feita  para  o homem, deverá  acompanhá-lo   em     suas carências e em seu crescimento.

Para alguns principiantes nas hostes da disciplina ela poderá parecer, uma acompanhante rigorosa, que tolhe iniciativas, castra desejos, dá ordens. Na verdade, se a disciplina não faz o papel de buril, lixa, tesoura ou algo que modele, desbastando contornos indesejáveis e arestas desnecessárias, ela falha em sua aplicação fundamental, pois não fará brilhar no Espírito a beleza encoberta pela capa da indiferença às leis divinas. Falo aqui da disciplina religiosa, aquela que induz o indivíduo à auto regulação, amoldando-se aos objetivos à serem colimados como meta de sua fé.

 Quando se resolve ser  umbandista, tem-se invariavelmente um encontro marcado com a disciplina. Mesmo que não seja o "vigiai e orai", estágio disciplinar mais avançado, o principiante umbandista deverá sair da rotina do comodismo, para a conscientização de suas necessidades evolutivas. Aos poucos ele vai descobrindo que no Templo umbandista os minutos revestem-se de maior significação, aproveitados no trabalho, no estudo doutrinário, no esclarecimento dos problemas existenciais, no fortalecimento da amizade, na gentileza ou nos afagos da caridade. Ali, o anedotário vulgar, o falatório impiedoso, a critica maldosa não prevalecem, pois não encontram receptividade para expandir-se. A dor alheia é sempre motivo de busca aos antídotos contra os venenos que a causaram, e a desgraça é sinal verde para a passagem da fraternidade restauradora.

A disciplina é moradora, e não visitante dos Templos Umbandista, pois aquele que a despede manda igualmente embora as rédeas da instituição. Disciplina e caridade formam o dueto maior de um templo, atuando conjuntamente sob a orientação do bom senso. A disciplina, nesse contexto, não deve ser tão rígida que atropele a caridade, e esta deve ser suficientemente racional para não descaracterizar a disciplina.

A disciplina é uma virtude divina, usada em todo o universo em seus aspectos macro e micro. Desde as galáxias aos nossos órgãos vitais, passando pela queda das flores e o pequenino átomo, esta virtude impõe suas diretrizes para que a harmonia não sofra defasagens. O fugitivo da disciplina vai de encontro a própria natureza quando, transportando-a dentro de si, em sua configuração anatômico-fisiológica, dela procura ausentar-se em processo de fuga infantil e sem saída. Sob esse prisma o indisciplinado é um fora da lei, que precisa ajustar-se ao roteiro benéfico para ele criado, visando proporcionar-lhe os benefícios da paz, fruto imediato do dever cumprido.

Nenhum Espírito há que tenha ingressado em um mundo superior sendo indiferente à disciplina. Ninguém há que ame a si e despreze a disciplina. Ninguém que busque a Deus pelos caminhos da indisciplina. A disciplina é companheira assídua da afetividade. Por esse motivo, qualquer pessoa que tente impor disciplina através de gritos  e ameaças (cumpridas ou não)  revela  desconhecimento  do tema. Neste caso, as palavras tentam obter a obediência ou mesmo a colaboração, mas na maioria das vezes obtêm apenas representações. Enquanto presente, a revolta muda usa a máscara da obediência e da participação, mas ao afastar-se o ditador prevalece o clima de desagrado e rebeldia. O pseudo-disciplinador pode até dizer: aqui eu mando e sou obedecido. Mas deveria complementar: e sou odiado. A atitude de firmeza e serenidade, a força vigorosa da delicadeza é que levam a uma disciplina por aquisição. Ao iniciar a colaboração no processo disciplinar, o indivíduo, de livre vontade, assume o engajamento nas mudanças, despertando o espírito para as reformas interiores que se refletem nos comportamentos exteriores.

Em algumas pessoas, a parte afetiva encontra-se soterrada sob camadas de mágoas, tristezas, ressentimentos, medo, frustração, raiva... Cabe ao disciplinador retirar o entulho depressivo ou rebeldia, para atingir o núcleo da afetividade que existe em todas as pessoas. Não é assim na desobsessão? O obsessor, rebelde a princípio, não vai perdendo as sucessivas camadas de sentimentos inferiores, demonstrando por fim o desejo de renovação, mola propulsora do seu refazimento?

O homem religioso sente necessidade de disciplinar seu Espírito dentro do "espírito" da verdade. A religião em si, de origem divina, mas administrada por humanos que introduzem nela seu personalismo, apresenta-se em muitas ocasiões carregada de vícios, incentivando a fé irracional ou morta, garroteando a autocrítica de seus seguidores. Muitas ainda em fase de seita salvacionista, pretendendo a posse exclusiva da verdade, apresentando-se como via única de salvação. Assim procedendo, amesquinha a ideia da dimensão de Deus, que é mostrado sob ótica estrábica, como o velho e ciumento Deus do Antigo Testamento, que distribuía privilégios indiscriminadamente. Agem como se Deus, o Senhor da Vida, pudesse colocar em mãos torpes a sua verdade universal e atemporal, luz demais para pobres lamparinas. Mas, muito antes de Moisés, a verdade do budismo já maravilhava o mundo com a sua simplicidade e beleza, antecipando a mensagem luminosa de Jesus. Não é sem razão que a Umbanda, o Espiritismo e o Budismo sejam as religiões que mais crescem no Brasil. Religiões que primam pela disciplina espiritual, levando à meditação libertadora, priorizando as virtudes espirituais, sem o obsessivo desejo de posse, sem a cobiça aos bens materiais.

Quando Jesus mencionou a "porta estreita", o "negar a si mesmo", o "tomar a sua cruz", estava falando de quê? Não seria de renúncia, uma das velhas companheiras da disciplina? Para entrar pela porta estreita é necessário rigorosa dieta espiritual, forçando a obesidade inútil das nossas imperfeições a diluir-se pela ginástica do amor. E para isso o cardápio não traz como prato principal a disciplina? Para tomar a cruz aos ombros é urgente negar a si mesmo, reafirmando não o eu mundano, mas o eu divino, essência final da evolução.

A disciplina é a madeira mágica da cruz. Quem a ela se submete de bom grado, a tem com ares maneirosos, e quem contra ela se rebela, a encontra com apêndices onerosos. Lembramos aqui que carregar a cruz é uma atitude difícil para a grande maioria de inconformados do mundo, que não entendem por que sofrem, nem para que sofrem, alienados pelos ensinamentos de suas religiões dogmáticas. O homem que auxiliou Jesus a carregar a mais bela cruz do planeta o fez por imposição irrecusável, como constrangidos são milhões de criaturas, para cumprirem suas obrigações cotidianas.

No Templo Umbandista, o bom senso não pode ser exceção. A ausência dele é regra que não se aplica aos que querem servir ao bem. O cidadão comum come, bebe, trabalha, deita e procria. Do umbandista exige-se algo mais, que o retire da extensa lista dos acomodados: a disciplina. E ela se afirma no esforço de renovação, que deve ser feito a cada dia. É esse esforço que nos pacifica e rejuvenesce. Perseguindo incessantemente a velha aspiração de paz e justiça, de fraternidade, de amor ao próximo e a si mesmo - essência da pedagogia cristã - o umbandista está perseguindo o ideal da doutrina, o saudável ideal que lhe mantém o entusiasmo, mesmo ali, onde os outros fraquejam e capitulam.

Disciplinemos nossas emoções para que elas não nos disciplinem. Lembremo-nos de que, para o cavalo a disciplina pode ser as rédeas, mas para o Espírito imortal ela tem que ser o amor e o conhecimento em toda a sua imensa gama de atuações.


 E não esqueçamos nunca: o advérbio de negação também consta da gramática do amor, no extenso capítulo da disciplina.

















aela apostila coletânea

2 comentários:

  1. Bacana esse texto. vem de encontro a algo que venho passando. Nesse caso, o indisciplinado sou eu, e a busca da disciplina passa por maior compreensão dos objetivos que se quer alcançar

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  2. Bacana esse texto. vem de encontro a algo que venho passando. Nesse caso, o indisciplinado sou eu, e a busca da disciplina passa por maior compreensão dos objetivos que se quer alcançar

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