sábado, 13 de outubro de 2012

O MILAGRE DA MEDIUNIDADE



 Cansada de tanta dor, aquela jovem senhora que mais denotava ser uma velha  pela aparência  do corpo arqueado, resolveu que buscaria dali em diante,  não mais o auxílio da medicina, mas o "milagre" dos céus. Assim, descendo  de seu pedestal de "madame" resolveu começar subindo a escadaria da Santa,  durante a Romaria. Lá rezou a sua maneira, acendeu velas e pediu cura.
 Ensinaram-lhe que precisava fazer novena e assim o fez. Nenhum sinal, nada  do milagre acontecer. As dores lancinantes em sua coluna após a subida da  escadaria e a falta de resultado após todo  sacrifício já a estavam  desanimando quando recebeu em suas mãos um panfleto. Ali estavam promessas  de cura, de verdadeiros milagres operados pela força do Espírito Santo e  foi para lá que ela dirigiu-se. No primeiro dia era preciso expulsar o  demônio e só depois de "colaborar" com o templo e iniciar uma corrente de  oração é que receberia a graça. Naquele lugar ela deixou uma boa quantia  do dinheiro que já escasseava devido a tantos gastos com a saúde e no  final de meses, nenhum resultado. Aborrecida já pensava no suicídio,  quando uma amiga, das poucas que ainda lhe restavam, falou de uma sortista  afamada que além de ver o futuro, por bem pouco dinheiro faria algumas  xaropadas que, com certeza lhe curariam. E assim foi que gastou mais do  que o prometido e tudo o que conseguiu foi um desarranjo intestinal.
A dor continuava. A fraqueza agora tomava conta daquele corpo e sua mente  já estava com dificuldade de raciocínio. Das Dores, que era sua confiável  e amorosa cozinheira de longos anos, encolhida em sua humildade, mesmo nada falando para sua patroa, fazia rezas e pedidos por sua saúde. Sabendo  da aversão que a madame tinha pelos cultos afros, nunca ousou lhe contar  que freqüentava um terreiro de Umbanda na periferia.


 Naquela manhã, a jovem senhora após uma noite de insônia e muita dor,  repensando em como sua vida estava sendo roubada dia após dia, desejou não  mais levantar da cama. Desde que as dores se instalaram em sua coluna, só  somara perdas, uma pós a outra. Primeiro foi o marido que arranjou outra  mulher, diante da limitação da esposa em acompanhá-lo na ativa vida  social;  depois a filha que se casou e mudou de país; após, os amigos  foram aos poucos afastando-se e agora o dinheiro escasseava.
 Das Dores, vendo que a patroa desistia de lutar, solicitou à sua protetora, preta velha a qual chamava de Maria Redonda, que lhe intuísse  de como agir para ajudar aquele espírito enfermo. Nessa noite, Das Dores  foi transportada em corpo astral para a colônia espiritual chamada Aruanda  e de lá trouxe os ensinamentos que precisava para socorrer a madame.
 Haveria de levantar a patroa daquele leito e mesmo a contragosto dela, dar-lhe um banho quente, vestir roupas claras e levá-la para o terreiro de Umbanda naquela noite em que se dava uma gira de preto velho.
Inventando  uma desculpa qualquer, a bondosa negra obedeceu à sua mentora e chamando  um táxi, transportou-a até o local. Quando chegaram, a sessão estava sendo  aberta e mesmo confiando na bondosa empregada, assustou-se vendo que  estava num "Centro de Macumba", denominação que usava para esses locais.
 Escutando lá de fora a batida dos tambores e o cantarolar efusivo da corrente mediúnica, seu coração disparou, suas mãos suaram, as pernas tremeram e em sua mente fervilhavam imagens que por mais que forçasse, não conseguia apagar. Afloravam ressonâncias de um passado onde usou a magia  de maneira errada como também de quando se viu vítima da Inquisição. Ora as imagens que tumultuavam sua mente eram de uma fogueira enorme onde via  seu corpo queimando; ora eram cenas de matança de aves cujo sangue lhe  banhavam a fronte. Dando um grito de horror, desmaiou.

 Assim, foi transportada para dentro do templo por dois cambonos e colocada  aos pés do congá. Rapidamente sob as ordens do Guia Chefe que já estava  atuando em seu médium, formou-se uma corrente de médiuns aos seu redor que  através da puxada de pontos cantados, incorporavam seus guias e  protetores. A vibratória de Exu se fez necessária para contenção das  forças que teimavam em comandar aquele espírito que ocupava o corpo  inerte. Dementados pelo ódio, nem perceberam que a luz os havia atraído e  assim se tornaram iscas para que fosse localizado no plano astral, o chefe  mago negro que comandava a operação.
Além de todos os socorros efetuados a nível astral, o trabalhadores espirituais ali presentes, através dos médiuns que cediam seus aparelhos, limpavam e curavam os corpos imateriais da jovem senhora que agora acordava sob o amparo da bondosa Das Dores. Sem tempo de tomar qualquer  atitude, foi levada por ela a uma sala interna do tempo, onde deitada em  maca coberta por alvos lençóis, ficaria até se restabelecer do desmaio.
 Enquanto isso, na frente do congá eram puxados pontos cantados na linha de  Yorimá para que a sessão que seria destinada aos pretos velhos pudesse ter  início. Entre essências e ervas e sob a égide do astral superior, os  bondosos e sábios espíritos baixavam suas vibrações para chegar até os  médiuns designados para o trabalho da noite. Um a um, sentadinhos em seus  tocos, cachimbando e batendo o pé atendiam amorosamente os consulentes que  se enfileiravam em busca de alento e conforto.
 Já no final da sessão, o guia chefe ordenou que fosse trazido a filha adoentada para que Maria Redonda a atendesse. Um tanto assustada ainda,  mas sentindo imensa paz e quase sem dor nenhuma, a madame se deixou levar  embalada pelos bons fluidos que inundavam aquele ambiente tão simples mas  onde podia sentir-se tão protegida.
 Sentada em frente a sua amada cozinheira, estranhou vendo-a vestida em  traje branco, fumando cachimbo e falando daquele jeito...
 - Saravá zifia!
Não obtendo resposta e sabendo da limitação de entendimento e da pouca fé  daquele espírito, a bondosa preta velha manifestou-se através da médium de  maneira que ela pudesse entender, ou seja, num linguajar mais adequado ao  seu nível cultural.


    A filha está assustada e a preta velha entende isso. Entende também que estavas carregando uma mala cheia de pedras nas costas da qual não querias te desvencilhar. Por isso, atendendo ao pedido de meu aparelho, juntamente com teus protetores e autorizados pela Lei do Grande Pai Oxalá, foi permitido que pudesses ter a oportunidade de largar essa mala no rio da vida e assim, aliviar o peso de teu carma. Depois de tantos caminhos percorridos, depois de tantos milagres negados, hoje, aqui neste humilde tempo terás a oportunidade de dizer sim ou não, pelo seu livre arbítrio, a continuidade deste sofrimento. Escolhestes o trabalho mediúnico para sanar erros do passado e no entanto deixastes que o preconceito e o materialismo vencessem a disputa entre o  bem e mal e por isso a dor como "desperta-dor". Nada tens no corpo físico e disso já és sabedora. O mal de que padeces se chama "mediunidade reprimida" , cuja demasia de ectoplasma está cristalizando já a nível dos corpos materiais, quando não, sendo utilizado pelas trevas, por falta do bom uso. Enquanto buscavas o milagre vindo de fora, teus amparadores nada podiam fazer a não ser deixar que se cumprisse a Lei. E assim foi feito.
Agora preta velha fala para a filha que só existe um caminho a ser trilhado - o do amor. Amor que vai curar, auxiliar, amparar. Neste templo tem um toco esperando uma preta velha que usará um corpo branco  para se manifestar.
 Por bom tempo, Das Dores foi a mestra daquela madame diplomada. Perguntas  e mais perguntas que eram respondidas com a simplicidade e o amor de que  são portadores os espíritos evoluídos e humildes. Hoje, enquanto a  sociedade abastada veste os corpos de ilusão da riqueza, da fama, do falso  sucesso, uma antiga dama dessa casta, dirige-se ao Templo de Umbanda para  lá prestar a caridade. Pés descalsos, sentada no toco, saudável e feliz,  leva conforto e luz a quem as trevas insiste em levar a dor. Aprendeu que  a fé às vezes precisa de um parto difícil para nascer, mas que só ela dá  sustentação real a tudo àquilo que existe em nossa vida.
 ( Vovó Benta )




TEXTO COLABORAÇÃO IVAN CROCETI


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