O homem contemporâneo,
vivendo numa fase de crise universal, determinada por mudanças rápidas em todos
os campos de sua atividade, defronta-se com um grave problema subjetivo: ser ou
não ser religioso. Os estudos sobre a origem e o desenvolvimento da Religião,
sua natureza, sua significação para o comportamento humano, seus efeitos na
dinâmica social e nos processos de renovação das estruturas econômicas e
administrativas da sociedade, bem como no desenvolvimento cultural e mais
especificamente das pesquisas científicas, oferecem-lhe opções contraditórias
que não levam a nenhuma solução, agravando a crise com o levantamento de novos
conflitos aparentemente insanáveis.
Culturalmente
marginalizada, a partir do Renascimento, a Religião se transformou numa questão
opinativa. Para os materialistas e ateus é apenas um resíduo do passado
supersticioso; para os pragmatistas, uma questão de conveniência; para os
espiritualistas, um problema vital, do qual depende a própria sobrevivência da
Humanidade. As posições opiniáticas, em todas essas áreas, geram a desconfiança
e a indiferença no seio das massas populares, desprovidas de elementos para uma
avaliação do problema, e muito menos para a sua equação.
O que hoje se convencionou
chamar de Ciência da Religião, abrangendo vários aspectos da questão religiosa
em diversas perspectivas cientificas, fora do campo religioso, apresenta-se
como análise fria do processo religioso, com base nos dados objetivos da
História. Mesmo a Psicologia das Religiões vê-se obrigada a pairar no plano das
estruturas das escolas psicológicas, sem mergulhar na essência do fenômeno
religioso, sob pena de perder a sua qualificação científica.
Acontece com a Religião o
mesmo que verificamos no tocante ao problema da vida, cuja solução se busca no
pressuposto de que o impulso vital se origina no campo dos aminoácidos. A
matéria, considerada como a fonte de toda energia - apesar da comprovação
cientifica atual de que é o produto da acumulação energética --- mantém-se na
posição de geradora da vida. Assim também se busca o segredo da Religião nas
suas formas de manifestação, na sua
estrutura e no seu funcionamento, como se ela se originasse das entranhas do
homem e não das profundezas do seu psiquismo. A vida, a alma, o sentimento e o
pensamento não seriam mais do que epifenômenos, efêmeras eclosões do fenômeno
orgânico, destinadas a desaparecer com este.
Não pretendo promover uma
revolução copérnica no assunto, mas apenas mostrar, se possível, a conveniência
de uma mudança de posição. Basta encararmos a Religião coma um fato social,
segundo a tese de Durkheim, sem nos limitarmos aos aspectos puramente
estruturais e funcionais do fato em si, para que as perspectivas da análise se
tornem mais amplas e flexíveis. Religião e Sociedade se mostram conjugadas indissoluvelmente
no plano histórico. Se tomarmos como exemplo o clã judaico de Abraão, do grupo
étnico dos Habiru, na Caldéia, veremos que ali se formava ao mesmo tempo uma
nova sociedade e uma nova religião que iriam exercer papel fundamental no
desenvolvimento da civilização. Ambas, sociedade e religião, nasciam no seio de
outra sociedade e outra religião, organizadas, tradicionais, e delas se
distinguiam pelas características étnicas e pela destinação histórica
tipicamente carismática, determinada pela tendência monoteísta do clã, sob o
impulso de crenças que se corporificavam nas manifestações de entidades
mitológicas. Abraão, Isaac e Jacó assumiram a direção do clã e o levariam,
através do Egito, às terras de Canaã, na Palestina, na sangrenta epopéia dos relatos
bíblicos.
Temos de distinguir no
caso dois elementos conjugados que provocam o nascimento da nova religião:
primeiro, o elemento étnico, determinante do agrupamento social; segundo, o
elemento mítico, determinante da nova orientação religiosa. Este último não se
mostra como subjetivo, mas caracteriza-se pela sua objetividade. E a
intervenção ativa de influências exó-genas na vida do clã, provenientes de
manifestações concretas de entidades espirituais. Por mais que isso possa
repugnar aos adeptos da interpretação psicológica dos fatos, que só aceitam as
manifestações espirituais como de ordem subjetiva, os resultados das pesquisas
modernas e contemporâneas no campo das Ciências Psíquicas, atualmente
confirmadas pelas pesquisas parapsicológicas, com a anterior comprovação das
pesquisas metapsíquicas, mostram que a intervenção espiritual poderia ter sido
objetiva, segundo a descrição dos relatos bíblicos.
Admitindo-se a realidade
dessa manifestação concreta, que corresponde a milhares de outras verificadas
em todas as latitudes do planeta, podemos chegar à conclusão de que as
religiões se originam de uma conjugação de fatores humanos e espirituais,
nenhum deles podendo ser excluído da análise honesta do fato social, sem que se
pratique uma violência contra a realidade mundialmente comprovada. Os fenômenos
paranormais aparecem então como o elemento básico do fato social a que chamamos
religião. E não é possível, nas condições atuais do desenvolvimento das
Ciências, mesmo no plano da Física, opor a essa realidade o simples desmentido
dos argumentos, sem provas científicas evidentes de sua impossibilidade.
Assim, a colocação do
problema religioso de maneira opiniática, em termos materialistas, pragmáticos
ou espiritualistas, nesta altura de nossa evolução cultural, corresponderia a
uma verdadeira heresia científica. Não obstante, o desenvolvimento das
religiões e sua institucionalização, em todo o mundo, oferecem motivos de
suspeita aos espíritos objetivos, que pretendem analisá-las no seu estado
atual. Nesse processo histórico inserem-se naturalmente os elementos do
psiquismo comum, em suas manifestações pura-mente subjetivas e não raro de
ordem patológica. Inserem-se também os elementos psicológicos, hoje bem
conhecidos, que determinam a criação do sectarismo religioso e das ordenações
institucionais, cujos objetivos são característicos dos interesses sociais.
Posições psicológicas individuais ou de grupos, tradições, interesses
políticos, preconceitos, superstições, interesses imediatistas, às vezes até
mesmo pessoais e outros são elementos que se mesclam no processo de
institucionalização das religiões, não raro a partir do próprio momento e da própria fonte
em que elas nascem. Mais do que difícil, é quase impossível distingui-los e
precisar a importância que tiveram no processo histórico.
As religiões se dividem em
duas categorias fundamentais: as reveladas ou naturais e as inventadas ou
artificiais. Independentemente das classificações existentes, podemos dispô-las
nessas duas linhas de analise. A religião natural, neste caso, é a que surge
espontaneamente, entre os povos primitivos ou civilizados, a partir do ensino
de um mestre. As artificiais são criadas no meio civilizado, em momentos de
crise religiosa, como no caso do Culto da Razão, de Chaumette, ou da Religião
da Humanidade, de Augusto Comte. As reformas religiosas não criam tipos novos,
apenas modificam os já existentes em virtude de divergências ou da verificação
de distorções havidas no processo de institucionalização. A religião
individual, da tese de Bergson, que corresponde à Moralidade da tese anterior
de Pestalozzi, não se enquadra nesse panorama por constituir uma superação do
plano social e uma libertação total de todo condicionamento institucional. Não
obstante, pela sua conotação inevitável com a realidade social em que se
insere, embora individualmente, não escapa ã classificação geral de fato
social.
Temos assim uma
possibilidade maior de esclarecer o que se pode entender por religião como fato
social. Não é apenas um fato isolado que ocorre na dinâmica de uma sociedade,
mas um fato que brota da realidade social como expressão de sua própria alma,
de suas tendências e suas aspirações, na forma de uma síntese conceptual que
engloba, nas suas representações simbólicas e na sua estrutura racional, os
elementos básicos do todo social concreto e os vetores ou direções do psiquismo
coletivo. Sem essa compreensão intuitiva, e portanto global, do fato social da
religião, todas as formas de encarar e interpretar o fenômeno religioso nos
levarão fatalmente a condicionamentos restritivos e esquemáticos, que só
poderão aumentar a confusão e agravar as erros cometidos na colocação do
problema.
Essa complexidade do
fenômeno religioso parece ,explicar de maneira mais profunda a marginalização
cultural a que a Religião foi relegada a partir do início do mundo moderno.
Confinada nas instituições igrejeiras, abastardada pelo profissionalismo
clerical, transformada em ópio do povo e sustentáculo de situações sociais
profundamente injustas, catalogada entre os produtos espúrios das fases de
ignorância supersticiosa, revertida à condição de promotora de guerras,
massacres e asfixia das liberdades humanas, utilizada como arma poderosa nas
mais desumanas guerras ideológicas, responsabilizada pelas mais cruéis deformações
da criatura humana, a Religião se constituiu em barreira de todo o progresso
cultural e foi excluída do mundo da Cultura como indesejável.
Não obstante, graças ao
poder subjacente nas estruturas formais das religiões e à conotação vital dos
seus princípios com as exigências naturais da consciência humana, sua posição
no processo cultural moderno e contemporâneo caracterizou-se pela ambivalência.
Sua exclusão não pode ser total, nem mesmo nas áreas políticas dominadas pelo
materialismo ideológico. Encarada ao mesmo tempo com ódio e respeito, numa
estranha mistura de desconfiança e temor, encontrou n a interpretação
pragmática, utilitária, de mal necessário, o salvo-conduto que lhe permite a
circulação tolerada nos meios culturais da atualidade.
Por outro lado, sua
presença nos meios culturais é sempre conflitiva. Não há possibilidade de
harmonização perfeita entre cultura religosa e cultura secular, a não ser no
plano da religião individual, que rompe o envoltório formal das religiões
sociais e é encarada por estas como uma aberração. O resultado mais negativo
dessa situação conflitiva foi o aparecimento de outro mal necessário, a
implantação mundial da Educação Leiga, que frustrou as possibilidades de
reelaboração da experiência religiosa pelas novas gerações e determinou a
sedimentação interesseira da sua posição de ambivalência no mundo contemporâneo. Como não
podia deixar de acontecer, essa posição ambígua, indefinida e contraditória em
si mesma, levou a proporções catastróficas a crise das religiões em nossos
dias.
Felizmente a natureza
vital da Religião, as suas profundas raízes ônticas (e não apenas ontológicas)
e a sua inelutável condição de síntese de toda a realidade social, determinaram
o aparecimento de uma síntese cultural em que a Religião, reunificada à revelia
da fragmentação institucional das religiões, ressurge entranhada na substância
do progresso cultural. Não podemos tratar da crise das religiões em nosso tempo
sem enquadrá-la nas dimensões desse fato cultural, onde todos os seus problemas
se esclarecem de maneira coerente e profunda. As pessoas integradas no
formalismo cultural do século, apegadas a princípios exclusivistas e alheias à
recomendação cartesiana contra o preconceito e a precipitação, certamente
rejeitarão como negativa e parcial a posição que assumo. Mas a coincidência com
a verdade histórica (simplesmente incontestável) com a conflitiva realidade
cultural dos nossos dias com as perspectivas científicas abertas por essa
síntese cultural e já em parte realizadas, asseguram a validade desta
interpretação, acima de qualquer facciosismo. Não seria possível desprezar a
evidência dos fatos e das conotações de princípios filosóficos e científicos
com o panorama real, objetivo, das mudanças que se verificam dia-a-dia: aos
nossos olhos, apenas para satisfazer a determinadas normas convencionais. Acima
das convenções transitórias e das conveniências de acomodação ao impreciso
espírito da época, deve prevalecer o amor à verdade.
Acelera-se o processo das
mudanças. Ampliam-se os conflitos entre o velho e o novo em todas as áreas das
atividades humanas. Descontrolam-se os sistemas de segurança em todas as
instituições. As religiões até ontem mais sólidas e poderosas agonizam em seus
leitos de riquezas milenarmente acumuladas. As teologias até ontem inabaláveis,
como estrelas fixas do pensamento religioso, estremecem coma a unidade
pitagórica para desencadear a década de novos universos. Rasgam-se as
fronteiras do tempo e do espaço. O homem se equilibra, nervoso e inquieto, na
fímbria tenuíssima da crosta planetária, entre dois infinitos que se escancaram
nos abismos do microcosmo e do macrocosmo.
Não é essa hora de
concessões à ignorância (ilustrada ou não) nem o momento de cachimbadas líricas
ao cair do crepúsculo. Estamos na hora da verdade, das proposições claras e
precisas, da posição destemida de alerta e vigilância. Precisamos ver, sentir,
perceber por todos os nossos sentidos e além dos sentidos, através da intuição
e da percepção extra-sensorial, que as peças envelhecidas do xadrez cultural
estão sendo mudadas no tabuleiro do mundo. Não há mais lugar para as
contemporizações tranquilas do passado, que acobertavam piedosamente os germes
dos conflitos atuais. Agora os conflitos explodem e temos de enfrentá-los face
a face.
Encarando a crise das
religiões coma um processo sócio cultural integrado na realidade imediata, não
podemos escamotear a verdade das soluções que já foram propostas para ela com
grande antecedência histórica. Trata-se, par sinal, de um processo cíclico
bastante conhecido dos estudiosos da História. Só há uma novidade na crise
atual: a violenta ampliação das dimensões da crise, que se abre para visões
dantescas do passado e do futuro. No passado, deparamos de novo com as regiões
infernais percorridas pelo gênio de Dante; no futuro, com as revoadas angélicas
da criação artística de Gustave Doré. Não há o que temer. O passado agoniza e o
futuro nos arrebata, pelas mãos de Beatriz, às regiões celestiais. Estamos
pisando no limiar da Era Cósmica e as constelações já brilham aos nossos olhos.
Do livro Agonia das Religiões
J. Herculano Pires
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